sábado, 20 de fevereiro de 2016

A quantas das minhas falhas ensinei o cheiro das borboletas?

Abro os olhos.
A terra arde. Tantos sussurros. Tantas palavras inexactas.
Nenhuma chuva.

Estou aqui para morrer, penso.
Para me lavar dos pecados com a língua. A mesma língua com que lambia a tinta das asas das borboletas.
Era uma criança nesse tempo.
Uma criança deitada na erva, ao sol. Rasgava-lhes as asas e esperava por um grito. Um grito misterioso. Monstruoso. Porque a dor das borboletas deveria ser algo apocalíptico. O tipo de som capaz de rasgar abismos, pensava.
Capaz de destruir o sol.

Mas,
as minhas borboletas nunca gritavam.

Ficavam assim: seres meios, em pedaços.
Fragmentos.
Coisas partidas que nem tristes eram. Nem coisas. Nem eram. Ficavam. Apenas. E sujavam-me os dedos.
Com melancolia.
E as crianças não percebem a melancolia. Percebem a tinta que suja os dedos e a dor que se grita.

Por vezes, quando levava os dedos à língua, sentia soltar-se, nos cantos mais obscuros da boca, um perfume profundamente agoniado. Cheio do movimento dos espinhos a rasgarem os caules das rosas. Cheio de feridas que se abrem para fora. Sem sangue.
Quando esse Verão acabou soube, com toda certeza, que as borboletas não gritavam. Sequer sangravam.
As borboletas cheiravam.
A rosas.
Cheiravam profundamente. Com dor.



Fotografia por Fátima Abreu Ferreira

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Ensaio sobre a cegueira

tu pela escuridão
eu pela luz;
assim nos afastamos:
cegos e invisíveis;
eu, tão rente ao céu
tu, tão agarrado ao chão.


George Gardner

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

4.48

Apago a luz e ando em casa às escuras,
com a tua voz guardada na pele.
Cega, levo as unhas às cicatrizes
na procura dos teus versos.

Levanto a faca para a carnificina,
mas há outra boca,
outra luz,
outra música.

A mão dança,
abre-se como um corpo,
e a luz estala:
quem te inventou?
quem te inventou?
quem te inventou?

4.48 da manhã.
As televisões estão cheias de histórias
mas os teus poemas morreram-me na língua.

Cortemos os membros,
salvemos o espírito
longe
longe
longe
de toda a poesia.



domingo, 7 de fevereiro de 2016

Não há mais anjos a abrirem-te miradouros.

A tarde morre, dolente, no chão dos teus pés.
Lá fora, as ruas enchem-se de gente. Os turistas levantam as bocas à nostalgia da cidade, os restaurantes gritam fúrias que se colam aos tímpanos, os sem abrigo arrastam-se para os cantos, anunciando o frio que se esconde sob as janelas dos hotéis.
Dentro do escritório, fechas as cortinas e observas-te ao espelho: as rugas escavadas à força dos pequenos abismos, as agulhas diluídas nas artérias, os cabelos caídos como versos maduros no Outono.
40 anos de deserto; de fissuras de carácter e pálpebras enevoadas.
Confortavelmente dormente, dirias.
Não esqueces.
Não esquecerás (nunca) - escreves - enquanto queimas as fotografias que te perseguem, com o fogo lento da tua própria adoração.
Não sabes como continuar, concluis, matando mais um cigarro. O fumo estala-te na garganta como um tiro. Não há mais anjos a abrirem-te miradouros e apenas tu notas a tua ausência.

Inspira.
Fundo.
Como se quisesses mesmo viver.

Quando voltares a abrir os olhos, todo o mundo terá mudado.
Será de noite e as lâmpadas dos teus candeeiros terão deixado de respirar.
Olhar-te-ás, de novo, ao espelho, na procura da luz esbatida de uma polaróide e o fogo terá corrompido o seu abandono.

Restarás,
sozinho,
escuro,
cego
pelo teu próprio reflexo.

Nobuyoshi Araki -  from the polaroid series Kekkai (2014)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Folhas de Inverno (ou, "os dias sem ninguém")

É no chão, 
rente aos pés,
que as folhas lhe sussurram
a fome e a sede por trás do poema.

Acontece de noite,
sempre de noite,
esta dolorosa melodia.
Desce
misteriosamente,
como uma vertigem;
ele deita-se, encosta
os ouvidos ao chão
como quem cerra os olhos contra a violência
(é preciso a inocência. desesperadamente a inocência)
e encurva-se no sono.

São então as luas e os insectos,
essas aves nocturnas, nucleares,
que lhe agarram as raízes do cabelo
contra a boca aberta da alucinação.
Radioactivos,
minam-lhe os olhos até aos neurónios;
enriquecem-no;
devastam-no;
comem-lhe o mundo e saem ébrios,
como estrelas nascidas de uma emboscada.

Por dentro,
no espaço mais quente do sangue,
fica a violência do sussurro,
a lenta apropriação do pesadelo
e a misteriosa melodia das folhas de Inverno.


Vivian Maier, Central Park, 1954


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sleep Deprived

- É preciso regras para os abismos Helena. E linhas. Linhas devidamente amontoadas, que é como quem diz, separadas pela mesma distância. Todas.

- Não é bem a mesma coisa.

- Não entendes. Temos que medir as linhas Helena. É peremptório que o façamos. Os abismos não acontecem entre dez milímetros. São cinco Helena. Cinco. Cinco mais cinco, mais cinco, mais cinco, entendes?

- Nunca fui boa a matemática.

- Mais cinco!
Não é Matemática Helena. É poesia. Se juntarmos muitos cincos milímetros e linhas finas e sem poeiras, sabemos que temos um bom lugar para um abismo. 
É muito simples, na verdade.

- Fátima, quantas horas dormiste hoje?

- Duas.
Tinha a cama cheia de abismos mas, não sabia da régua.



Gösta Åbergh, 1959


Natural born killer

because poetry 
is what we do when everything else fails

Regresso sempre a passos largos. 
Os tempos são de saudade, são de ilhas até onde ninguém sabe nadar, de sombras àcidas a galopar os dias que separam a minha mão do teu peito.
E alguém precisa comer as sombras. Alguém precisa morder toda esta morte experimentada.
Caio.
Enrolo-me no guarda-chuva e tropeço nos pés mas, não desisto.Não são as pernas que me levam, é este peito feito incêndio, acostumado ao outro lado do teu olhar.
Talvez sorria. Talvez agradeça a cumplicidade das casas que morrem na janela do comboio. Talvez me retire para dentro dos ossos e adormeça por instantes. Talvez faça qualquer coisa que encha os quilómetros que se suicidam na linha. Qualquer coisa enquanto espero o grito final, o urro angustiado da distância a sangrar nas fissuras dos meus punhos.
Nesse momento, no auge de toda a minha violência, recordar-me-ei que aprendi a suster a respiração e todas as minhas minúsculas angústias, e poderei, finalmente, inspirar.
Profundamente.
Na tua boca.