sábado, 30 de abril de 2016

Considerações metafísicas sobre dores de garganta

É preciso a morte de todas as sombras;
a asfixia dos gemidos tristes.
Enfiar o punho na profunda garganta negra
e arrancar essa lânguida violência.

É preciso cantar;
longamente cantar, como dizia o poeta;
sussurrar as asas de uma ave marítima
como o fio de prumo de uma vida.

Depois,
é preciso o silêncio.
Abrir os punhos, e
deixar escorrer o sangue,
essa coisa feita música vermelha,
feita céu
feita estrelas
feita esperança
(ou Universo).


Dos dias em que os teus lábios eram as linhas que separavam o céu da terra.

Chamar-te-ei,
e o teu nome será igual à distância.
Estarás por dentro do silêncio:
com a língua a guardar-te os restos dos sonhos,

Nas minhas mãos,
apenas a longa memória dos teus dedos
corromperá o vazio que escavaste
e me recordará dos dias
em que os teus lábios
eram as linhas que separavam o céu da terra.



quinta-feira, 21 de abril de 2016

Da complexidade dos pontos.

Eu - é nos pontos que tudo se perde Helena.
Helena - Nos pontos?
Eu - Sim. Nos pontos. Ponto a ponto. Ponto por ponto.
Helena - Do que é que estas a falar?
Eu - Do cansaço.
Helena - Do cansaço? Não era dos pontos?
Eu - Claro que é.
Helena - Não te entendo Fátima.
Eu - Ponto final, então.
Helena - Isso é coisa para reticências.
Eu - Sim. Agoras entendes. Três pontos. Vês como é nos pontos que tudo muda?
Helena - Na verdade nãoFátima. Não fazes sentido. 
Eu - Porque estás a complicar Helena. Eu explico; não é dificil: pegas num ponto (final) e somas-lhe outro. O fim desaparece Helena. Toda a gente sabe que não há fim em dois pontos finais. Apenas abismos (ou a porta para os parêntesis, o que é a mesma coisa)
E se vier um outro? 
Helena - Outro ponto final?
Eu - Sim. Outro ponto final. 
Helena - Não sei, Fátima. O que acontece?
Eu - Tudo. Três pontos é o espaco para tudo. Menos para o fim. O fim, adulterou-se. Deixa de existir pelo mero facto de haver algo mais ao lado; ou na frente, ou por cima. E não me faças falar de quando é por dentro Helena.
Helena - Mas... de que raio estas tu a falar, Fátima?
Eu - Do amor.
Helena - Do amor? Mas, não era do cansaço?
Eu - Claro que sim Helena. Junta os pontos.


Fotografia - Fatima Abreu Ferreira, Lisboa, 2016




quarta-feira, 6 de abril de 2016

Summertime Blues

Com o tempo, as bocas tornaram-se coisas vagas. Abstractas. Duas línguas sem saberem dançar. E quando ela se sentava em frente à janela, ele punha uma memória de vinil na ponta da agulha.
Calavam-se.
Profundamente.
Mas nenhum ouvia a música. 

Lá fora chovia e os beijos molhavam-se até às sarjetas.


Ingmar Bergman Summer with Monika (1953)



domingo, 3 de abril de 2016

Lost persons street

Há ruas que nos curvam.
Fazem-nos assim, coisas tortas, a pender para o lado que nos é menos cómodo - aquele onde guardamos a alma como um lençol amarrotado. Sujo. Sem expiação possível.
A minha rua é uma dessas ruas.
E eu pendo para o lado esquerdo onde guardo os olhos e as histórias que gostava de contar se a vida não fosse esta coisa aborrecida de ser apanhada pelos dias.

Vivo no primeiro direito.
Talvez seja por isso.
Nada de cheio acontece no primeiro direito.
É sempre tudo à esquerda. Até as flores.
As flores apenas acontecem do lado esquerdo

Na minha rua mora um louco.
O Jorge.
O Jorge é louco porque é o único que anda com as costas direitas.
Todos os moradores da minha rua se curvam para direita ou para a esquerda, menos ele.
Ele é vertical e isso é uma coisa muito estranha de se ser numa rua destas.
Quando sai de casa sorri e acena e deseja bom dia, e todos nós ficamos a olhar; a vê-lo passar pela padaria para levar os dois pães com manteiga à Dona Clara que mora na rua em frente e faz arranjos de costura logo pela manhã.
Tem muito trabalho a Dona Clara. Estamos em tempo de crise e agora remenda-se em vez de se deitar fora. Mas, quando o louco do Jorge lhe bate à porta com os pães com manteiga a Dona Clara sorri sempre, como se aquela verticalidade toda fosse uma espécie de candeeiro.

Às vezes fico a vê-los da janela, como quem vê atentamente um filme.
Ele abre a porta e ela sorri da mesa de costura. O pé no pedal a dar força ao segredo que junta os trapos e os olhos de quem sabe que é a chorar que se aprende a dançar.

Estou em crer que foram as agulhas da Dona Clara a coser o Jorge tão ao centro.

Um destes dias levo-lhe o meu lado esquerdo. Uma bainha mais subida, umas pinças, o lençol passado a ferro e, quem sabe, começo a andar direito.

Depois virá a loucura e as flores que irão morrer.


Elliott Erwitt