quinta-feira, 23 de junho de 2016

Ophelia

Deitada acima do tempo,
a boca abria-se-lhe ao abismo interior
do céu. 
água desatava-lhe a pele,
as flores mordiam-lhe o corpo,
e ela cantava o sorriso ardente
na curva molhada da língua.

Com as unhas, 
rasgava a melodia pela garganta
como quem desmebra um incêndio pela cabeça.
e dançava o corpo,
leviana à agonia que lhe mordia as pernas.

Do outro lado,
sentado na espuma líquida da margem,
alguem pintava a sua voz vermelha
e o doce abraço das flores aquáticas.
Nos seus pincéis, 
qual lua cega e abstracta,
o hálito de Ophelia
perguntava:

-"ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza".


O jardineiro

Levava os dedos como raízes ao peito,
pintando uma primavera a céu aberto.
Da camisa caíam-lhe os exorcismos
e a inesperada beleza do gesso
onde os olhos choravam vísceras.
Suspendia o tempo em fios de arame
para guardar um lugar sozinho,
e todas as flores da terra
pareciam crescer
um pouco à sombra do seu sorriso.