sábado, 19 de novembro de 2016

Tremor

Morder a realidade.
Abotoar as guerras diárias na margem dos lábios e abandonar tudo. A casa. O corpo. O peito. Os versos que me cresceram na pele - riscados à força de um sol sem nome.
Ser esta rua vestida de despedidas antes de todas as moradas de silêncio,
antes da melancolia nos incendiar as roupas,
antes da velhice nos oferecer a sombra.

Para onde vão todos estes comboios?Estas linhas oblíquas nas mãos desfocadas à força de partidas rápidas e agoniadas?
Para onde vão todos estes olhos?
todas estas águas?

Pouco me interessa.
Esperem-me.

Guardem-me um lugar;
- se possível à janela para poder ver o mundo morrer em torno dos vastos pomares
e os desertos de desejo;
um lugar onde a dor dance ao som de um último cigarro
e do sangue de todas as línguas que mordi.

Fatima Abreu Ferreira, Selfportrait, 2016

sábado, 12 de novembro de 2016

Ao Leonard

As estações crescem umas sobre as outras e da minha àrvore caem demasiados pàssaros.
Talvez seja tempo de deixar de acreditar na possibilidade das asas. Talvez o mundo seja agora, este poema mal escrito, à força de ossos como palha seca e peitos feitos searas de espinhos.
Deserta-se-me um pouco (mais) do fogo hoje.
Arranha-se-me um pouco (mais) a garganta.
Respirar custa quando se perde o mapa do mundo e eu não sei andar pela rua sem a tua voz.

Resta (e vale) a memória.

O som do coração a bater rouco nos versos
e o amor na língua;
as cidades tomadas de assalto,
as musas estendidas sob os olhos em oração,
as gabardines azuis,
e a eterna possibilidade da valsa.

Tudo isto, ósseo
dentro de um punho fechado
na boca.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Planos interiores (1&2)

#1

Contraído no escuro do quarto
serves a dor ao som de um punho fechado,
nas lâminas de uma língua em delírio.
Perdes-te nas mãos,
na carne revolta que se dobra sobre a espada,
no gemido de algum sonho
bordado a dentes húmidos de incêndio.
Vibram os arcos da respiração
e o peito abre-se ao andamento feroz
da violência que se conta nua
aos corredores subterrâneos dos teus olhos.


 #2
Depois o prenúncio:
o excesso último do grito extasiado,
e a minha boca, alargada a vermelho
para te lamber a loucura e
guardar a morte que te pinga dos dedos.


(algures no céu da minha boca, o meu sorriso dobra, ligeiramente, os joelhos).


Paulo Nozzolino



domingo, 23 de outubro de 2016

13

Aguardar a chegada das chuvas.
Multiplicar por treze as pedras na garganta;
mordê-las,
à força da febre
com dentes de aço
e cigarros apagados nos pulsos.

Falta-te a língua das dores que dançavam
de pés descalços no escuro das igrejas,
das molduras partidas em rios que separam mundos
e não sabes do risco de andar de olhos abertos à chuva,
da ferrugem que entra órbitas adentro
nem da escuridão capaz de acender certos lugares.

E tudo isto,
esta memória de tudo, sujeita à morte
ao declínio do olhar
acontece no tempo que levas a entrar na porta.

Voz off:
            (no silêncio do corredor
             alguma distorção mostra
             que o filme ainda segue).

Paulo Nozolino - Bone Lonely

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Das visões

Os olhos pendiam como lágrimas
e a luz que entrava chegava para definir o rosto do silêncio.
Alguém muito escuro, cheio de dentes feridos
e pregos ao peito
deitava-se
e sabia:
na sombra dos frutos maduros
a saliva transforma-se em cinza,
tudo enlouquece
e as facas aprendem a solene arte de aparar a tristeza dos pulsos.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Desmembramento

A luz rasga a carne
e o desmembramento começa:
primeiro a cabeça que me pende sobre os ombros
assim, a jeito de dança
como quem sabe da leveza sombria
por trás de uns olhos cegos.
Depois a boca,
cheia de dedos ferozes
e fome de rasgar gargantas.
Um tremor.
Os poros das minhas mãos.
Um sussurro abafado
talhando as cicatrizes por dentro das costelas e,
finalmente, o peito
astro terrível de pesadelos inomináveis,
Um abrir de olhos
e todas as costelas cedem.
A tua boca como um lugar luminoso.

Prenúncio:
Com a lentidão das tuas mãos
vem a lucidez do asfalto.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O sangue do poeta

Ser esta mulher ao relento;
esta ruína fértil de labaredas
e árvores em osso a crescerem-me nos olhos.
Dar um passo no mundo
e deitar as veias sobre a cama
como o sangue do poeta:
um remexer de trevas
ver o céu arder
e entregar-te o peito
com quem esventra um animal.

No fim,
o silêncio
balouçado em todos os teus medos
e a lembrança:
de todos os pregos nos meus olhos
a tua boca é aquele que mais me dói.


segunda-feira, 5 de setembro de 2016

estas plantas mortas

Acordo.
As pernas demasiado reais,
doentes, como unhas a rasgarem a carne dos lençóis.
Ao meu redor, as garrafas vazias sangram
corpos abandonados.
Ouço a minha respiração.
Ouço.
A minha respiração.

Tivesse eu um peito e animais a crescerem-me por dentro
um tigre,
uma hiena
uma águia de bico afiado
para comer esta alma encolhida,
estas plantas mortas
e todos os vasos apagados


Fátima Abreu Ferreira, Esposende, Setembro de 2016

domingo, 28 de agosto de 2016

Pequena síncope cardíaca

e éramos nós, o incêndio ininterrupto,
a veia aberta por onde respiravam todas as bocas,
comprida, aguda, prenha
no sopro irreparável do lado esquerdo.

Coimbra, Agosto de 2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Ophelia

Deitada acima do tempo,
a boca abria-se-lhe ao abismo interior
do céu. 
água desatava-lhe a pele,
as flores mordiam-lhe o corpo,
e ela cantava o sorriso ardente
na curva molhada da língua.

Com as unhas, 
rasgava a melodia pela garganta
como quem desmebra um incêndio pela cabeça.
e dançava o corpo,
leviana à agonia que lhe mordia as pernas.

Do outro lado,
sentado na espuma líquida da margem,
alguem pintava a sua voz vermelha
e o doce abraço das flores aquáticas.
Nos seus pincéis, 
qual lua cega e abstracta,
o hálito de Ophelia
perguntava:

-"ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza".


O jardineiro

Levava os dedos como raízes ao peito,
pintando uma primavera a céu aberto.
Da camisa caíam-lhe os exorcismos
e a inesperada beleza do gesso
onde os olhos choravam vísceras.
Suspendia o tempo em fios de arame
para guardar um lugar sozinho,
e todas as flores da terra
pareciam crescer
um pouco à sombra do seu sorriso.

sábado, 30 de abril de 2016

Considerações metafísicas sobre dores de garganta

É preciso a morte de todas as sombras;
a asfixia dos gemidos tristes.
Enfiar o punho na profunda garganta negra
e arrancar essa lânguida violência.

É preciso cantar;
longamente cantar, como dizia o poeta;
sussurrar as asas de uma ave marítima
como o fio de prumo de uma vida.

Depois,
é preciso o silêncio.
Abrir os punhos, e
deixar escorrer o sangue,
essa coisa feita música vermelha,
feita céu
feita estrelas
feita esperança
(ou Universo).


Dos dias em que os teus lábios eram as linhas que separavam o céu da terra.

Chamar-te-ei,
e o teu nome será igual à distância.
Estarás por dentro do silêncio:
com a língua a guardar-te os restos dos sonhos,

Nas minhas mãos,
apenas a longa memória dos teus dedos
corromperá o vazio que escavaste
e me recordará dos dias
em que os teus lábios
eram as linhas que separavam o céu da terra.



quinta-feira, 21 de abril de 2016

Da complexidade dos pontos.

Eu - é nos pontos que tudo se perde Helena.
Helena - Nos pontos?
Eu - Sim. Nos pontos. Ponto a ponto. Ponto por ponto.
Helena - Do que é que estas a falar?
Eu - Do cansaço.
Helena - Do cansaço? Não era dos pontos?
Eu - Claro que é.
Helena - Não te entendo Fátima.
Eu - Ponto final, então.
Helena - Isso é coisa para reticências.
Eu - Sim. Agoras entendes. Três pontos. Vês como é nos pontos que tudo muda?
Helena - Na verdade nãoFátima. Não fazes sentido. 
Eu - Porque estás a complicar Helena. Eu explico; não é dificil: pegas num ponto (final) e somas-lhe outro. O fim desaparece Helena. Toda a gente sabe que não há fim em dois pontos finais. Apenas abismos (ou a porta para os parêntesis, o que é a mesma coisa)
E se vier um outro? 
Helena - Outro ponto final?
Eu - Sim. Outro ponto final. 
Helena - Não sei, Fátima. O que acontece?
Eu - Tudo. Três pontos é o espaco para tudo. Menos para o fim. O fim, adulterou-se. Deixa de existir pelo mero facto de haver algo mais ao lado; ou na frente, ou por cima. E não me faças falar de quando é por dentro Helena.
Helena - Mas... de que raio estas tu a falar, Fátima?
Eu - Do amor.
Helena - Do amor? Mas, não era do cansaço?
Eu - Claro que sim Helena. Junta os pontos.


Fotografia - Fatima Abreu Ferreira, Lisboa, 2016




quarta-feira, 6 de abril de 2016

Summertime Blues

Com o tempo, as bocas tornaram-se coisas vagas. Abstractas. Duas línguas sem saberem dançar. E quando ela se sentava em frente à janela, ele punha uma memória de vinil na ponta da agulha.
Calavam-se.
Profundamente.
Mas nenhum ouvia a música. 

Lá fora chovia e os beijos molhavam-se até às sarjetas.


Ingmar Bergman Summer with Monika (1953)



domingo, 3 de abril de 2016

Lost persons street

Há ruas que nos curvam.
Fazem-nos assim, coisas tortas, a pender para o lado que nos é menos cómodo - aquele onde guardamos a alma como um lençol amarrotado. Sujo. Sem expiação possível.
A minha rua é uma dessas ruas.
E eu pendo para o lado esquerdo onde guardo os olhos e as histórias que gostava de contar se a vida não fosse esta coisa aborrecida de ser apanhada pelos dias.

Vivo no primeiro direito.
Talvez seja por isso.
Nada de cheio acontece no primeiro direito.
É sempre tudo à esquerda. Até as flores.
As flores apenas acontecem do lado esquerdo

Na minha rua mora um louco.
O Jorge.
O Jorge é louco porque é o único que anda com as costas direitas.
Todos os moradores da minha rua se curvam para direita ou para a esquerda, menos ele.
Ele é vertical e isso é uma coisa muito estranha de se ser numa rua destas.
Quando sai de casa sorri e acena e deseja bom dia, e todos nós ficamos a olhar; a vê-lo passar pela padaria para levar os dois pães com manteiga à Dona Clara que mora na rua em frente e faz arranjos de costura logo pela manhã.
Tem muito trabalho a Dona Clara. Estamos em tempo de crise e agora remenda-se em vez de se deitar fora. Mas, quando o louco do Jorge lhe bate à porta com os pães com manteiga a Dona Clara sorri sempre, como se aquela verticalidade toda fosse uma espécie de candeeiro.

Às vezes fico a vê-los da janela, como quem vê atentamente um filme.
Ele abre a porta e ela sorri da mesa de costura. O pé no pedal a dar força ao segredo que junta os trapos e os olhos de quem sabe que é a chorar que se aprende a dançar.

Estou em crer que foram as agulhas da Dona Clara a coser o Jorge tão ao centro.

Um destes dias levo-lhe o meu lado esquerdo. Uma bainha mais subida, umas pinças, o lençol passado a ferro e, quem sabe, começo a andar direito.

Depois virá a loucura e as flores que irão morrer.


Elliott Erwitt

quarta-feira, 16 de março de 2016

Considerações filosóficas de um prenúncio primaveril

É, portanto, isto o Amor.
Reconhecer alguém pelos nós dos dedos. Pelas linhas que desenham os abismos diários. Fracturas expostas, mesmo dos dias em que não se vive. Como as Terças -feiras. (ninguém vive às Terças-feiras).
É reconhecer alguém pelas unhas sujas e o verniz estalado. Os dedos dobrados sobre as tristezas que sufocamos.

Ou talvez não.

Talvez nada disto seja Amor, e uma mão seja, apenas, uma mão e os sonhos morram mesmo antes de começarem e nenhuma estrada na tua epiderme tenha sido aberta ao ritmo das tuas feridas.
Ainda assim.
Ainda que as linhas das tuas mãos não sejam um cemitério de ilusões, amar é isto: reconhecer-te pelo nós dos dedos.
Pelo princípio de algo terrível.
Catastroficamente belo.

Fatima Abreu Ferreira, Março, 2016




terça-feira, 8 de março de 2016

Sobre o Amor, crenças e outros abismos

Quantos abismos terei mais que gritar?
Quantas fissuras esgravataremos com as unhas cheias da àgua que precisamos para sobreviver?
Parece-me um desperdício toda esta àgua.
Nas unhas.
Na boca.
Nos olhos.
Sabes que hoje chorei um rio? Quando me apercebi, não tinha pé e os meus braços não sabiam nadar porque lhes faltavam as pernas (e toda a gente sabe que os braços não vão a lado nenhum sem pernas). Fiquei assim, uma espécie de metade. Um fragmento. Uma coisa meia que não saber ser. Nem nadar. (sequer respirar).
De repente, sem saber como, percebi que bastava acreditar. Acreditar que as minhas pernas (ou tu) estavam lá. Que eu era agora uma coisa inteira, capaz de sobreviver.
Tão simples, não é?
Acreditar.
Tudo se resume a isto, na verdade. Ter fé que a profunda claridade dos teus olhos azuis cortar-me-à os pulsos com uma luz inabalável. Capaz de rasgar os abismos dentro do abismo em que me tornei.

Rega-me - peço-te.
Carinhosamente.
Todos os dias.
Até me deixares morrer.

Fátima Abreu Ferreira, Março, 2016

sexta-feira, 4 de março de 2016

Devastemos. Devastemos. Devastemos.

Ainda chove nas ruas.
Uma água misteriosa,
um instinto que explica todas as sombras.

É tempo de milagres,
alguém lembra
(longinquamente)
e a água cai-me na boca
num peso lúbrico,
um incêndio azul.

- Acredita - dizes
como quem pede o fogo.

Não há,
em ti,
gestos ou palavras
incapazes de rasgar
a desordem da minha garganta;
e deitas-me,
muda
sobre todos os meus punhais.

Là fora
a lua rebenta
as ruas alagam-se
e o eco das nossas bocas corre
como um rio
até ao fundo dos esgostos.

"Devastemos,
devastemos,
devastemos."

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A quantas das minhas falhas ensinei o cheiro das borboletas?

Abro os olhos.
A terra arde. Tantos sussurros. Tantas palavras inexactas.
Nenhuma chuva.

Estou aqui para morrer, penso.
Para me lavar dos pecados com a língua. A mesma língua com que lambia a tinta das asas das borboletas.
Era uma criança nesse tempo.
Uma criança deitada na erva, ao sol. Rasgava-lhes as asas e esperava por um grito. Um grito misterioso. Monstruoso. Porque a dor das borboletas deveria ser algo apocalíptico. O tipo de som capaz de rasgar abismos, pensava.
Capaz de destruir o sol.

Mas,
as minhas borboletas nunca gritavam.

Ficavam assim: seres meios, em pedaços.
Fragmentos.
Coisas partidas que nem tristes eram. Nem coisas. Nem eram. Ficavam. Apenas. E sujavam-me os dedos.
Com melancolia.
E as crianças não percebem a melancolia. Percebem a tinta que suja os dedos e a dor que se grita.

Por vezes, quando levava os dedos à língua, sentia soltar-se, nos cantos mais obscuros da boca, um perfume profundamente agoniado. Cheio do movimento dos espinhos a rasgarem os caules das rosas. Cheio de feridas que se abrem para fora. Sem sangue.
Quando esse Verão acabou soube, com toda certeza, que as borboletas não gritavam. Sequer sangravam.
As borboletas cheiravam.
A rosas.
Cheiravam profundamente. Com dor.



Fotografia por Fátima Abreu Ferreira

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Ensaio sobre a cegueira

tu pela escuridão
eu pela luz;
assim nos afastamos:
cegos e invisíveis;
eu, tão rente ao céu
tu, tão agarrado ao chão.


George Gardner

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

4.48

Apago a luz e ando em casa às escuras,
com a tua voz guardada na pele.
Cega, levo as unhas às cicatrizes
na procura dos teus versos.

Levanto a faca para a carnificina,
mas há outra boca,
outra luz,
outra música.

A mão dança,
abre-se como um corpo,
e a luz estala:
quem te inventou?
quem te inventou?
quem te inventou?

4.48 da manhã.
As televisões estão cheias de histórias
mas os teus poemas morreram-me na língua.

Cortemos os membros,
salvemos o espírito
longe
longe
longe
de toda a poesia.



domingo, 7 de fevereiro de 2016

Não há mais anjos a abrirem-te miradouros.

A tarde morre, dolente, no chão dos teus pés.
Lá fora, as ruas enchem-se de gente. Os turistas levantam as bocas à nostalgia da cidade, os restaurantes gritam fúrias que se colam aos tímpanos, os sem abrigo arrastam-se para os cantos, anunciando o frio que se esconde sob as janelas dos hotéis.
Dentro do escritório, fechas as cortinas e observas-te ao espelho: as rugas escavadas à força dos pequenos abismos, as agulhas diluídas nas artérias, os cabelos caídos como versos maduros no Outono.
40 anos de deserto; de fissuras de carácter e pálpebras enevoadas.
Confortavelmente dormente, dirias.
Não esqueces.
Não esquecerás (nunca) - escreves - enquanto queimas as fotografias que te perseguem, com o fogo lento da tua própria adoração.
Não sabes como continuar, concluis, matando mais um cigarro. O fumo estala-te na garganta como um tiro. Não há mais anjos a abrirem-te miradouros e apenas tu notas a tua ausência.

Inspira.
Fundo.
Como se quisesses mesmo viver.

Quando voltares a abrir os olhos, todo o mundo terá mudado.
Será de noite e as lâmpadas dos teus candeeiros terão deixado de respirar.
Olhar-te-ás, de novo, ao espelho, na procura da luz esbatida de uma polaróide e o fogo terá corrompido o seu abandono.

Restarás,
sozinho,
escuro,
cego
pelo teu próprio reflexo.

Nobuyoshi Araki -  from the polaroid series Kekkai (2014)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Folhas de Inverno (ou, "os dias sem ninguém")

É no chão, 
rente aos pés,
que as folhas lhe sussurram
a fome e a sede por trás do poema.

Acontece de noite,
sempre de noite,
esta dolorosa melodia.
Desce
misteriosamente,
como uma vertigem;
ele deita-se, encosta
os ouvidos ao chão
como quem cerra os olhos contra a violência
(é preciso a inocência. desesperadamente a inocência)
e encurva-se no sono.

São então as luas e os insectos,
essas aves nocturnas, nucleares,
que lhe agarram as raízes do cabelo
contra a boca aberta da alucinação.
Radioactivos,
minam-lhe os olhos até aos neurónios;
enriquecem-no;
devastam-no;
comem-lhe o mundo e saem ébrios,
como estrelas nascidas de uma emboscada.

Por dentro,
no espaço mais quente do sangue,
fica a violência do sussurro,
a lenta apropriação do pesadelo
e a misteriosa melodia das folhas de Inverno.


Vivian Maier, Central Park, 1954


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sleep Deprived

- É preciso regras para os abismos Helena. E linhas. Linhas devidamente amontoadas, que é como quem diz, separadas pela mesma distância. Todas.

- Não é bem a mesma coisa.

- Não entendes. Temos que medir as linhas Helena. É peremptório que o façamos. Os abismos não acontecem entre dez milímetros. São cinco Helena. Cinco. Cinco mais cinco, mais cinco, mais cinco, entendes?

- Nunca fui boa a matemática.

- Mais cinco!
Não é Matemática Helena. É poesia. Se juntarmos muitos cincos milímetros e linhas finas e sem poeiras, sabemos que temos um bom lugar para um abismo. 
É muito simples, na verdade.

- Fátima, quantas horas dormiste hoje?

- Duas.
Tinha a cama cheia de abismos mas, não sabia da régua.



Gösta Åbergh, 1959


Natural born killer

because poetry 
is what we do when everything else fails

Regresso sempre a passos largos. 
Os tempos são de saudade, são de ilhas até onde ninguém sabe nadar, de sombras àcidas a galopar os dias que separam a minha mão do teu peito.
E alguém precisa comer as sombras. Alguém precisa morder toda esta morte experimentada.
Caio.
Enrolo-me no guarda-chuva e tropeço nos pés mas, não desisto.Não são as pernas que me levam, é este peito feito incêndio, acostumado ao outro lado do teu olhar.
Talvez sorria. Talvez agradeça a cumplicidade das casas que morrem na janela do comboio. Talvez me retire para dentro dos ossos e adormeça por instantes. Talvez faça qualquer coisa que encha os quilómetros que se suicidam na linha. Qualquer coisa enquanto espero o grito final, o urro angustiado da distância a sangrar nas fissuras dos meus punhos.
Nesse momento, no auge de toda a minha violência, recordar-me-ei que aprendi a suster a respiração e todas as minhas minúsculas angústias, e poderei, finalmente, inspirar.
Profundamente.
Na tua boca.


domingo, 31 de janeiro de 2016

Cortina Vermelha

Levanto-me e abro a cortina vermelha. Inspiro fundo. A manhã caiu molhada sobre as fotografias espalhadas no parapeito da janela.
Algo mudou lá fora.
Tudo cheira a luz e a sombra das coisas despiu-se de melancolias.
Pergunto-te se serei capaz de viver sob este efeito, este filtro simples do teu olhar. Estás deitado sobre a tua janela, sobre as casas a amanhecerem-te nas mãos (ninguém deveria viver tão alto, penso). Respondes: pedes que te deixe matar-me. Que é isso que se faz quando se ama.
E eu sorrio com a perfeição do teu fogo.
Nesse instante, decido: uma destas manhãs lanço âncoras no teu céu e deixo-me ficar a ver-te seres claridade. Talvez me voltes a fazer acreditar na linguagem límpida das palavras, talvez me construas pálpebras de luz, e me lembres que a fuga é possível; que o mundo não é, afinal, apenas este lugar onde nos esbatemos lentamente, como uma memória velha que não encontra lugar nas molduras em cima da cómoda.

Até lá,
deito-me na sombra desta cortina vermelha e espero que os dias me cubram os ombros de pássaros.
Um dia nascer-me-ão as asas dos caminhos até ti.


Saul Leiter - Red Courtain






terça-feira, 26 de janeiro de 2016

The point of abandonment

Rasgado no meio dos olhos,
o Homem arde as escadas,
fôlego a fôlego.

Os ombros pesam-lhe,
rasgam-se pelas costuras
com o peso da gangrena.

Está dentro 
dentro da carne,
exposto à cegueira do mundo.

A vida veio e partiu.
Os esgotos encheram-se com os seus ossos,
e nas veias,
apenas os suicídios lhe cumprem
a luz dos candeeiros envelhecidos.

Nada mais resta.
Nada mais respira.
Apenas os pés,
cheios de raiva e murmúrios
fazem doer a morte
de baixo para cima.

Um navio cego,
numa floresta negra.
e,
de repente,
todo o corpo dói,
todo o sangue se despede.

Adeus.
Adeus.
A
   Deus.


Fátima Abreu Ferreira, Porto, Bolhão, Janeiro de 2016

domingo, 24 de janeiro de 2016

Aduela

Estendes as mãos
à carne das minhas palavras.
Não há melancolia.
Apenas o silêncio,
incendiando as portas
- sangrentas -
dos nossos olhos.

Juntos,
atravessamos os espíritos da cidade.
A pele
aprendendo a salvação
na loucura da garganta;
as línguas
acordando como facas iluminadas.

Somos o Poema.
A loucura fundamental do sangue.

À nossa volta,
tudo se distancia.
Tudo procura o frio da cegueira,
a morte das estrelas.

Só nós,
pesados de fogo e vísceras,
carregamos qualquer coisa eterna.
Límpida.
Serena.

Larry Fink




segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

E desfazia-se a carne, quando o mundo acordava

É na minha mão,
na curva quente dos meus dedos
que dorme o fogo
das coisas àsperas,
e a luz incendiada da manhã.

Fátima Abreu Ferreira 

domingo, 10 de janeiro de 2016

Veneno de Domingo.

Como se fosse impossível continuar,
desprendi-me da urgência.
Engoli as noites que tornavam
ásperas
as minhas paredes;
deixei-me adormecer na sombra
da poeira que escondia nos cantos.

É Domingo.

Os muros cresceram-me à janela,
no lugar onde vendias
a boca por um incêndio.
Por entre as chuvas de Janeiro,
fizeram-se árvores,
fizeram-se silêncio;
agora, nenhuma luz entra
e nada mais se cumpre.

Nem mesmo a tua solidão.


Daido Moriyama

sábado, 2 de janeiro de 2016

Nova língua

Uma voz.
Os dedos.
As mãos movendo-se
por entre as nascentes dos ossos.

Dentro da chuva,
a palavra suplica uma tempestade,
queimadura branca
árdua,
ofegante raíz
na minha garganta.

Lembro-me
(ao longe)
de que sei respirar e
acendo as sombras;
ponho-me a inventar línguas
no desespero
- absoluto -
de ensinar à minha boca
um novo poema.



Daido Moriyama