domingo, 3 de abril de 2016

Lost persons street

Há ruas que nos curvam.
Fazem-nos assim, coisas tortas, a pender para o lado que nos é menos cómodo - aquele onde guardamos a alma como um lençol amarrotado. Sujo. Sem expiação possível.
A minha rua é uma dessas ruas.
E eu pendo para o lado esquerdo onde guardo os olhos e as histórias que gostava de contar se a vida não fosse esta coisa aborrecida de ser apanhada pelos dias.

Vivo no primeiro direito.
Talvez seja por isso.
Nada de cheio acontece no primeiro direito.
É sempre tudo à esquerda. Até as flores.
As flores apenas acontecem do lado esquerdo

Na minha rua mora um louco.
O Jorge.
O Jorge é louco porque é o único que anda com as costas direitas.
Todos os moradores da minha rua se curvam para direita ou para a esquerda, menos ele.
Ele é vertical e isso é uma coisa muito estranha de se ser numa rua destas.
Quando sai de casa sorri e acena e deseja bom dia, e todos nós ficamos a olhar; a vê-lo passar pela padaria para levar os dois pães com manteiga à Dona Clara que mora na rua em frente e faz arranjos de costura logo pela manhã.
Tem muito trabalho a Dona Clara. Estamos em tempo de crise e agora remenda-se em vez de se deitar fora. Mas, quando o louco do Jorge lhe bate à porta com os pães com manteiga a Dona Clara sorri sempre, como se aquela verticalidade toda fosse uma espécie de candeeiro.

Às vezes fico a vê-los da janela, como quem vê atentamente um filme.
Ele abre a porta e ela sorri da mesa de costura. O pé no pedal a dar força ao segredo que junta os trapos e os olhos de quem sabe que é a chorar que se aprende a dançar.

Estou em crer que foram as agulhas da Dona Clara a coser o Jorge tão ao centro.

Um destes dias levo-lhe o meu lado esquerdo. Uma bainha mais subida, umas pinças, o lençol passado a ferro e, quem sabe, começo a andar direito.

Depois virá a loucura e as flores que irão morrer.


Elliott Erwitt

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